ESTOPIM




Pneus cantaram. Os dois garotos viram a ambulância passando em alta velocidade, seguida de perto por um sedã que corria mais ainda. Segundos depois ouviram a freada, buzinas e o barulho da batida. Correram junto com a multidão de curiosos até o local do acidente, viram sangue espirrar, mas não era do acidente.
- Diogo... aquele cara espancando o motorista da ambulância, não é o professor Rodrigo?
- Não pode ser! O Rodrigo não machuca nem um mosquito, ele deixou o Ademir rir da cara dele e não disse nada...
- Olha lá, é ele sim, vai matar o cara!
Naquela manhã, o professor Rodrigo aguardava em sua mesa enquanto os alunos terminavam as provas. Segurava um bilhete que já havia lido dez vezes, indignado.
“Professor Rodrigo, tivemos uma reclamação do aluno Ademir Rocha, que relatou sofrer abusos em suas aulas. Como o senhor sabe, ele é filho de nosso Governador e sua permanência em nossa escola nos traz grandes benefícios, sua influência não pode ser substituída tão facilmente quanto os funcionários de nosso corpo docente. O rapaz é bom em outras matérias, porém, algo com a vossa didática o impede de tirar boas notas na disciplina de Língua Portuguesa. Sugerimos que reveja suas práticas para que esse equívoco seja corrigido.
Atenciosamente, a direção.”

Ele analisou o texto: sabia que “benefícios” significava desvio de dinheiro e “algo com a sua didática” queria dizer que ele devia passar a mão na cabeça do moleque ou perderia o emprego. Já a palavra “abusos”...
a.bu.so
sm (lat abusu) 1 Uso errado, excessivo ou injusto.
Se era injusto pedir que largasse o celular e prestasse atenção na aula, então ele era culpado.
Ademir se levantou, cutucou o colega e, com um sorriso no rosto, entregou a prova em branco ao professor, dizendo:
- Quero meu dez, ein! – e saíram rindo da sala.
Rodrigo sabia o que poderia acontecer se não desse a nota ao rapaz. Ficou quieto e foi para casa.
“Preciso de uma cerveja” – Pensou.
Chegou em casa e viu seu melhor amigo Peres parado em frente à porta. O amigo o cumprimentou de modo envergonhado, sem olha-lo nos olhos. Quando abriu a porta viu malas prontas e ouviu passos agitados. Eram de sua esposa.
- Você chegou cedo!
- Cheguei na hora, onde vai?
- Embora – e em meio a lágrimas e um choro sufocado ela disse o quanto estava infeliz e o quanto o casamento com ele parecia uma prisão. Havia encontrado refúgio nos braços de Peres e ia embora com ele.
Rodrigo não soube o que responder. Em sua vida a dois ele trabalhava e ela gastava, ele fazia surpresas e ela nunca queria ir a lugar algum. Ela não fazia nada, ele limpava e cozinhava, ela chegava do salão de beleza cansada demais para conversar.
- Adeus amigo – disse Peres, que o conhecia desde a quarta série, enquanto carregava as malas de sua esposa até o carro e saíam de sua vida.
a.mi.go
adj (lat amicu) 1 Que tem gosto por alguma coisa; apreciador.
Era um apreciador de esposas, isso sim. Ele precisava mais ainda de uma cerveja.
Foi até a cozinha, abriu a geladeira. Nenhuma cerveja.
Sobre a pia havia garrafas vazias, algumas com marcas de batom. Foi até o quarto, a cama estava desarrumada, uma calcinha vermelha jogada no chão. Precisava sair dali, estar em outro lugar.
Não acredito que beberam minha cerveja importada” Pensou indignado no caminho até o posto. Não queria pensar em nada do que estava acontecendo, só esvaziar a mente. Não costumava beber muito, só sentia essa necessidade quando estava estressado, mas isso estava ficando cada vez mais frequente.
Só um posto na cidade vendia a cerveja importada de que gostava, e era dela que ele estava precisando. Correu até o lugar, estacionou ao lado de uma ambulância e foi procurar a bebida. A pequena geladeira da loja só tinha uma, Rodrigo demorou a encontra-la, desviando de um homem gordo que também procurava alguma coisa por ali.
Colocou a garrafa em sua cesta e pegou uns salgadinhos, quando olhou novamente para a cesta a garrafa não estava lá. Viu o homem gordo, no caixa, com sua garrafa verde inconfundível.
- Ei! – gritou Rodrigo – Essa cerveja é minha – não podia deixar que roubasse isso dele, aqueles breves minutos de felicidade.
- Eu peguei do freezer – mentiu o gordo, com cara de deboche – ache outra pra você.
O caixa riu baixo. Rodrigo largou a cesta e saiu da loja, indignado. Seguiu com o carro até o sinal vermelho, uma ambulância parou à sua direita, dando seta para a esquerda. O professor não ligou, ela não poderia virar em cima dele, mas quando o sinal abriu, foi exatamente o que aconteceu. O motorista acelerou e jogou a ambulância em cima do carro de Rodrigo, virando à esquerda e quase batendo em mais carros que estavam ali.
Dirigindo a ambulância estava o homem gordo da loja, ele olhou para Rodrigo durante a curva, rindo com dentes amarelos atirou a garrafa já vazia em cima de seu carro:
- Toma sua cerveja, retardado!
re.tar.da.do
adj (part de retardar) 1 Que se retardou. 2 Que opera com retardamento.
Já tinha mesmo se retardado demais, estava na hora de tomar uma atitude. Ainda com o carro parado no meio da rua, seu celular tocou.
- Alô, Rodrigo! É o diretor, como você pôde reprovar o filho do governador? Venha já para...
Sem responder ele joga o telefone pela janela, engata a primeira marcha e corre pela avenida, atrás da ambulância. Ele a acerta em cheio na lateral durante uma curva, os dois automóveis ficam grudados na calçada, amassados e cheios de fumaça. Rodrigo desce do carro, arranca o gordo ainda tonto de seu assento, o joga no chão e começa a soca-lo furiosamente, sangue espirra em seu rosto.
Ele só para quando dois policiais o tiram de cima do motorista e o jogam dentro da viatura.
As pessoas em volta estavam com cara de espanto.
Algemado no banco de trás do carro de polícia, Rodrigo suspira, havia conseguido seus minutos de felicidade, o que viria depois não importava, pela primeira vez na vida estava satisfeito.
sa.tis.fa.ção
sf (lat satisfactione) 1 Ato ou efeito de satisfazer. 2 Sensação agradável 3 Ação de satisfazer o que se deve a outrem. 4 Reparação de uma ofensa.

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